domingo, 28 de setembro de 2014

Arte e agonia: transporte público carioca me lembra Cildo Meireles

fonte: http://livroseafins.com/a-coca-cola-incendiaria-de-cildo-meireles/

A imagem acima retrata as intervenções artísticas de Cildo Meireles. Durante a nossa ditadura militar, o artista se utilizava dos cascos retornáveis das velhas "coquinhas" para trazer questões incômodas ao poder constituído, afrontar o regime, os EUA e até mesmo ensinar a fazer coquetéis molotov.

Imagino a indignação dos liberticidas da época com as intervenções do artista. Devem ter se amargurado com a formiguinha que, com muita paciência, foi inundando os bares com as intervenções. A divulgação das mensagens era difícil de reprimir, eis que a tinta utilizada, quando o casco estava vazio, as deixava quase invisíveis. Quando o maquinário da indústria enchia o vasilhame com o líquido preto, a intervenção se destacava.

Imagino a cara de um milico ao ler as instruções para o fabrico de um coquetel molotov em seu amado refresco. 

Tenho notado um fenômeno semelhante aqui no Rio, em imagens que são divulgadas nos trens e mais recentemente no metrô.

Observo o mesmo trabalho de formiguinha, o trabalho anônimo e irreverente, com o justo intuito de incomodar os liberticidas e seus financiadores.

A primeira vez que percebi esse fenômeno foi através do facebook, em uma imagem que retratava um cartaz que seria uma cópia fiel dos avisos de divulgação da concessionária ferroviária, contudo, no lugar das velhas mentiras e mantras do tipo "estamos melhorando sua via, caro usuário" o cartaz dizia: em horários de pico, pode ser necessário que você deixe outras pessoas sentarem no seu colo.



Em clara alusão ao serviço porco gerado pela privatização ensandecida tupiniquim, os cartazes foram reproduzindo outras pautas: a supervia é isenta de pagar os milhões de reais em multas que deve aos cofres públicos, porque a agetransp é uma agência reguladora de fachada, composta por pessoas ligadas aos governantes e a empresários do setor de transportes.



Outra faz alusão à ridícula situação de não possuirmos ar condicionado em 100% das composições ou ônibus que servem uma cidade que possui os verões mais quentes do Brasil:




Como o autor(es) das intervenções é anônimo e, depois da evidente contrariedade por parte dos incomodados, que já falam em investigação, provavelmente assim se manterá, tomei a liberdade de usar as imagens sem refletir créditos.

Impressionante como a perspicácia de Cildo Meireles foi reproduzida nessas novas intervenções que, através de frases simples, conseguem expor os maiores defeitos de nosso privatismo ensandecido e clientelista.

A falta de estrutura adequada para o transporte digno dos cidadãos do Rio, a ridícula fiscalização de fachada e o interesse empresarial em detrimento do conforto do público expõem o absurdo que envolve o transporte público carioca.

De fato, os trens, há muito privatizados, são incapazes de trazer maior conforto às pessoas da periferia. E o mesmo acontece nos ônibus, privatizados aqui no Rio há ainda mais tempo.

A camaradagem que nossos governantes mantêm com os empresários do setor que, apesar do parco investimento e do ridículo retorno ao consumidor pelo valor da passagem, são agraciados com aumentos constantes, joga ladeira abaixo a sofrível argumentação de que o empresário privado brasileiro será mais honesto e eficiente do que o seu Estado.

Muita vista grossa para irregularidades, vide o estado dos ônibus que circulam pela cidade, principalmente fora da Zona Sul (você pode não acreditar, mas eu já cansei de andar neles), o comportamento ensandecido de motoristas mal treinados e atormentados pelo calor e pelo barulho (e, logicamente, pelas multas que deveriam levar) e o interminável esquecimento da obrigação de investir devidamente no serviço que exploram, já que nem mesmo se procede à instalação de ar condicionado nos suadouros que chamamos de ônibus e trens, fazem da privatização de nosso transporte público uma evidente ilusão. 

Recentemente fui surpreendido com mais uma intervenção, dessa vez no metrô, que fazia alusão às notícias sobre o processo licitatório fraudulento que teria envolvido a compra dos mais novos vagões:



O melhor é que esse tem direito à tradução para o inglês. Já que eles querem vender o Rio aos turistas, que ao menos os gringos saibam que na Cidade Maravilhosa nem tudo são flores, na verdade, em relação à universalização de direitos, notadamente em relação à mobilidade urbana, nossa cidade é puro espinho.

Os conformistas, amantes da tecnocracia e, ainda, os crédulos que acham que um serviço privado que, por sua natureza, não possui concorrência (e por nossa desonestidade, não sofre fiscalização efetiva), vai ser superior ao que o nosso Estado seria capaz de prover, provavelmente vão dizer que estou superestimando a ação de um revoltado qualquer.

O mais engraçado é que os neocons cariocas, não bastassem fingir ignorar o estado calamitoso do seu transporte público (o da Baixada consegue ser pior) para não parar de defender a propagação de uma privatização que possui as mesmas práticas do serviço público, ainda reclamam que os pobres agora podem comprar carro!

Pois eu acho que esta é uma maravilhosa lembranças das garrafinhas de Coca de Cildo Meireles. As novas intervenções expressam não só o sentimento de resistência urbana diária, descompromissado com resultados, mas sim com a própria luta, com que tanto me identifico, mas também a possibilidade de trazer um número enorme de usuários para o debate e, quiçá, para o apoio da próxima manifestação em prol da democratização do direito de ir e vir.

Que venham mais lembranças deliciosas da nossa arte como essas e que os liberticidas do negócio bilionário que expõe o carioca a uma agonia diária para se locomover continuem batendo cabeça para saber quem é o subversivo dos cartazes. Viva a zoeira! 


* * * *

Se a obra de Cildo Meireles te deixou curioso, seguem alguns links:

http://cildomeireles.blogspot.com.br/

http://up-arteconceitual.blogspot.com.br/2011/06/obras-brasileiras-cildo-meireles-nasceu.html

http://tiajanaprof.blogspot.com.br/2012/05/coca-cola-incendiaria-de-cildo-meireles.html

http://livroseafins.com/a-coca-cola-incendiaria-de-cildo-meireles/
   

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