domingo, 28 de setembro de 2014

Arte e agonia: transporte público carioca me lembra Cildo Meireles

fonte: http://livroseafins.com/a-coca-cola-incendiaria-de-cildo-meireles/

A imagem acima retrata as intervenções artísticas de Cildo Meireles. Durante a nossa ditadura militar, o artista se utilizava dos cascos retornáveis das velhas "coquinhas" para trazer questões incômodas ao poder constituído, afrontar o regime, os EUA e até mesmo ensinar a fazer coquetéis molotov.

Imagino a indignação dos liberticidas da época com as intervenções do artista. Devem ter se amargurado com a formiguinha que, com muita paciência, foi inundando os bares com as intervenções. A divulgação das mensagens era difícil de reprimir, eis que a tinta utilizada, quando o casco estava vazio, as deixava quase invisíveis. Quando o maquinário da indústria enchia o vasilhame com o líquido preto, a intervenção se destacava.

Imagino a cara de um milico ao ler as instruções para o fabrico de um coquetel molotov em seu amado refresco. 

Tenho notado um fenômeno semelhante aqui no Rio, em imagens que são divulgadas nos trens e mais recentemente no metrô.

Observo o mesmo trabalho de formiguinha, o trabalho anônimo e irreverente, com o justo intuito de incomodar os liberticidas e seus financiadores.

A primeira vez que percebi esse fenômeno foi através do facebook, em uma imagem que retratava um cartaz que seria uma cópia fiel dos avisos de divulgação da concessionária ferroviária, contudo, no lugar das velhas mentiras e mantras do tipo "estamos melhorando sua via, caro usuário" o cartaz dizia: em horários de pico, pode ser necessário que você deixe outras pessoas sentarem no seu colo.



Em clara alusão ao serviço porco gerado pela privatização ensandecida tupiniquim, os cartazes foram reproduzindo outras pautas: a supervia é isenta de pagar os milhões de reais em multas que deve aos cofres públicos, porque a agetransp é uma agência reguladora de fachada, composta por pessoas ligadas aos governantes e a empresários do setor de transportes.



Outra faz alusão à ridícula situação de não possuirmos ar condicionado em 100% das composições ou ônibus que servem uma cidade que possui os verões mais quentes do Brasil:




Como o autor(es) das intervenções é anônimo e, depois da evidente contrariedade por parte dos incomodados, que já falam em investigação, provavelmente assim se manterá, tomei a liberdade de usar as imagens sem refletir créditos.

Impressionante como a perspicácia de Cildo Meireles foi reproduzida nessas novas intervenções que, através de frases simples, conseguem expor os maiores defeitos de nosso privatismo ensandecido e clientelista.

A falta de estrutura adequada para o transporte digno dos cidadãos do Rio, a ridícula fiscalização de fachada e o interesse empresarial em detrimento do conforto do público expõem o absurdo que envolve o transporte público carioca.

De fato, os trens, há muito privatizados, são incapazes de trazer maior conforto às pessoas da periferia. E o mesmo acontece nos ônibus, privatizados aqui no Rio há ainda mais tempo.

A camaradagem que nossos governantes mantêm com os empresários do setor que, apesar do parco investimento e do ridículo retorno ao consumidor pelo valor da passagem, são agraciados com aumentos constantes, joga ladeira abaixo a sofrível argumentação de que o empresário privado brasileiro será mais honesto e eficiente do que o seu Estado.

Muita vista grossa para irregularidades, vide o estado dos ônibus que circulam pela cidade, principalmente fora da Zona Sul (você pode não acreditar, mas eu já cansei de andar neles), o comportamento ensandecido de motoristas mal treinados e atormentados pelo calor e pelo barulho (e, logicamente, pelas multas que deveriam levar) e o interminável esquecimento da obrigação de investir devidamente no serviço que exploram, já que nem mesmo se procede à instalação de ar condicionado nos suadouros que chamamos de ônibus e trens, fazem da privatização de nosso transporte público uma evidente ilusão. 

Recentemente fui surpreendido com mais uma intervenção, dessa vez no metrô, que fazia alusão às notícias sobre o processo licitatório fraudulento que teria envolvido a compra dos mais novos vagões:



O melhor é que esse tem direito à tradução para o inglês. Já que eles querem vender o Rio aos turistas, que ao menos os gringos saibam que na Cidade Maravilhosa nem tudo são flores, na verdade, em relação à universalização de direitos, notadamente em relação à mobilidade urbana, nossa cidade é puro espinho.

Os conformistas, amantes da tecnocracia e, ainda, os crédulos que acham que um serviço privado que, por sua natureza, não possui concorrência (e por nossa desonestidade, não sofre fiscalização efetiva), vai ser superior ao que o nosso Estado seria capaz de prover, provavelmente vão dizer que estou superestimando a ação de um revoltado qualquer.

O mais engraçado é que os neocons cariocas, não bastassem fingir ignorar o estado calamitoso do seu transporte público (o da Baixada consegue ser pior) para não parar de defender a propagação de uma privatização que possui as mesmas práticas do serviço público, ainda reclamam que os pobres agora podem comprar carro!

Pois eu acho que esta é uma maravilhosa lembranças das garrafinhas de Coca de Cildo Meireles. As novas intervenções expressam não só o sentimento de resistência urbana diária, descompromissado com resultados, mas sim com a própria luta, com que tanto me identifico, mas também a possibilidade de trazer um número enorme de usuários para o debate e, quiçá, para o apoio da próxima manifestação em prol da democratização do direito de ir e vir.

Que venham mais lembranças deliciosas da nossa arte como essas e que os liberticidas do negócio bilionário que expõe o carioca a uma agonia diária para se locomover continuem batendo cabeça para saber quem é o subversivo dos cartazes. Viva a zoeira! 


* * * *

Se a obra de Cildo Meireles te deixou curioso, seguem alguns links:

http://cildomeireles.blogspot.com.br/

http://up-arteconceitual.blogspot.com.br/2011/06/obras-brasileiras-cildo-meireles-nasceu.html

http://tiajanaprof.blogspot.com.br/2012/05/coca-cola-incendiaria-de-cildo-meireles.html

http://livroseafins.com/a-coca-cola-incendiaria-de-cildo-meireles/
   

segunda-feira, 15 de setembro de 2014

A terra bárbara da Pensilvânia

Reprodução da capa do album Crime of the Century, Supertramp
Recentemente fui surpreendido por uma postagem na minha timeline feita por uma amigo virtual americano (*adoro a globalização e o intercâmbio de ideias que ultrapassem nossas fronteiras). Segundo a notícia, os policiais do Estado da Pensilvânia, graças a uma recente decisão judicial, não mais precisarão de mandado judicial para revistar o carro de alguém. O cara estava consternado e se dizia aviltado. 

Mais do que surpreendente, tal notícia é um tapa na cara daqueles que se utilizam dos Estados Unidos como exemplo de leis duras e de políticas policialescas enérgicas. O que dirão os americanófilos ao saber que tudo funcionava "perfeitamente" lá, mesmo diante da necessidade da polícia precisar de um mandado judicial para a revista de um veículo? Será que a Pensilvânia, antes dessa decisão, era uma terra bárbara, onde bandidos se escondiam por trás do excesso de garantismo? Ou será que, na verdade, a supressão de requisitos para abordagem policial não seja tão relevante para o controle da criminalidade?

Talvez essa notícia demonstre que, finalmente, o Estado da Pensilvânia está no rumo certo. No entanto, se estava no rumo errado ao exigir mandado judicial para revista de automóveis, me pergunto, por que a Pensilvânia, até hoje, não estrela os noticiários que enaltecem o barbarismo?

Será possível que os EUA tenham sido dominados pelos defensores de bandidos? Se for o caso, a notícia mostra que essa dominação se deu há muito tempo e que, talvez, existam defensores da marginalidade em todo o lugar do mundo, mesmo na meca da prosperidade mercadológica.

Para quem acredita no rigorismo americano como padrão, talvez o Estado da Pensilvânia seja apenas um hospício. Para os que demonstrarem curiosidade sobre o sistema legal americano a realidade será outra: por lá, não há padrão.

Curioso que no País onde os bandidos não tenham moleza, os residentes do Estado da Pensilvânia criem polêmica em torno de algo que aqui é mais do que corriqueiro: a revista policial de um carro.

Fui parado em blitz durante boa parte da minha vida. Agora que ostento rugas e cabelos brancos, fiquei com cara de gente de bem, pouco sofro com isso, mas durante todo esse tempo sempre encarei a revista com naturalidade, afinal, aquilo era um reflexo cotidiano do poder de polícia.

Fosse a proposta de obrigatoriedade a mandado prévio para revista de um veículo privado levada a uma das Casas do Povo por um político de esquerda, provavelmente os coxinhas gritariam contra essa esquerda maldita, que tem peninha de bandido, para, logo depois, louvar a seriedade americana.

Caso, por exemplo, se realizasse uma fiscalização intensa para se averiguar se a revista ao veículo foi verdadeiramente autorizada pelo seu proprietário, na certa iriam dizer que os esquerdopatas defensores de bandido querem dificultar o trabalho da polícia.

Mal sabem eles que esse tipo de fiscalização é realizado por meio de câmeras na maioria dos Estados americanos e há muito tempo.

Caberia, ainda, o velho argumento de que quem não deve não teme e que a tentativa de restringir a verificação de quem é bandido nos centros urbanos seria, logicamente, coisa de quem admira o "direito dos manos".

Por outro lado, a notícia expressa, ainda, o equívoco do discurso daqueles que simplesmente taxam a legislação americana de neofascismo. O estereótipo (seja de exemplo a ser seguido ou evitado, de forma incondicional) é descabido devido à alta autonomia dos Estados americanos em relação à sua legislação. Não é à toa que Colorado e Washington legalizaram a Cannabis e  a Califórnia está bem perto disso, enquanto outros Estados, de maior influência conservadora, não querem sequer discutir o assunto. Do outro lado da corrente, alguns Estados americanos ainda mantém normas arcaicas,  moralistas e algumas que, devido à sua distância da realidade cotidiana, são inexequíveis.

Por esse simples dado é possível que se avalie a dimensão da ignorância daqueles que, ao compararem as leis americanas e brasileiras, conservam em sua opinião a nossa forma de Federalismo, que, visivelmente, é muito distinta da do americano.

Não pretendo discutir aqui se deveríamos seguir o modelo americano ou não, seria leviano fazê-lo sem que fosse através de um trabalho acadêmico muito bem composto, que avaliasse causas e conseqüências e, ainda, as gritantes diferenças sociais e culturais dos dois países. O que pretendo expor é a diferença dos fatos para os discursos simplistas, tanto dos que acusam os EUA, de forma generalista, de ser uma nação de Leis excessivamente rigorosas, quanto aqueles que acham que é exatamente por isso que eles são "a maior nação do planeta".

Não acho descabidas as comparações entre as normas utilizadas pelo poder constituído de cada País, o que acho descabido é o simplismo que deixa escapar que nos EUA, enquanto um Estado corresponde ao discurso conservador, outros se opõem de forma sistemática a ele.

A Califórnia, novamente como exemplo, recentemente permitiu que imigrantes ilegais se candidatem ao cargo de policiais. Quando estive por lá, no ano passado, já notei essa tendência californiana de diálogo com os ilegais, ao ler em um jornal local que o Governador daquele Estado considerou como atentatória à liberdade individual o envio de dados para os serviços de imigração dos imigrantes ilegais que estivessem envolvidos em pequenos delitos.

De acordo com o Governador californiano, a simples expulsão, baseada em pequenos delitos, apenas estimularia a mera troca da mão de obra ilegal, no lugar de tentar inserir os ilegais no sistema previdenciário americano.

"Nossa economia depende dessa mão de obra e não podemos simplesmente utilizá-los como simples matéria prima humana. Temos que tirá-los da margem da sociedade americana." Concorde-se ou não com a afirmativa, com certeza o Governador da Califórnia demonstra que há diversidade de discurso, mesmo em um país onde, politicamente, a esquerda não teria vez.

Acho que compreender as diferenças normativas nos Estados americanos é não só um exercício de civismo, mas uma ótima forma de reflexão para soluções que aqui acabam sempre no telequete eleitoral estrelado pelo sectarismo.

Um país que muitos consideram como habitado por direitistas ou direitistas disfarçados que se dizem esquerdistas é um ótimo parâmetro de observação para a composição de diversidade ideológica, já que, como aqui e como em qualquer lugar do mundo, as tendências se opõem e se criticam. Talvez o caro leitor continue achando que a esquerda americana é direitista, contudo, notar as diferenças dos discursos antes de aplaudir ou vaiar é o primeiro passo para entrar na área cinza da política e entender que por mais que se tenha diferenças culturais ou políticas sempre teremos um lado para o qual direcionar nossa participação. Isso é uma ótima lembrança para as próximas eleições...


Se você ficou curioso sobre a notícia postada pelo meu amigo virtual americano, segue o link: http://thefreethoughtproject.com/pennsylvania-cops-longer-warrants-search-vehicles/

Eis um exeplo de leis americanas no mínimo curiosas: http://super.abril.com.br/cotidiano/leis-absurdas-442600.shtml

quinta-feira, 11 de setembro de 2014

O Júbilo, o mito e o constrangimento.


Foto: Django Unchained, do Tarantino

As recentes declarações do candidato tucano em defesa da redução da maioridade penal como meio de "acabar com a sensação de impunidade que reina no País" trazem mais uma vez o importante debate sobre o tema.

Em relação  ao discurso ilusório em defesa da redução da maioridade penal cito dois ótimos textos ao final e por isso peço licença para me desviar do assunto.

Já manifestei nesse espaço o que considero o mito da impunidade, por meio do texto Pedrinhas no sapato dos sanguinários (http://vmucury.blogspot.com.br/2014/01/pedrinhas-no-sapato-dos-sanguinarios.html ), contudo, provocado pela inconsequente declaração do último colocado do G-3 eleitoral, faço mais uma reflexão relacionada ao assunto.

Identifico três personagens nessa questão relativa aos justiceiros, os arautos do desejo de parte da sociedade civil de se defender das consequências de nossa legislação "favorável" à bandidagem. O júbilo desumano, o mito do brasileiro sangue bom e o constrangimento dos que defendiam aquilo sem pensar e depois se tocaram que, de fato, os comunistas podiam ter um milionésimo de razão, já que uma moça de bem, casada e com dois filhos foi assassinada barbaramente, através do mesmo tipo de julgamento sumário que se deu sobre o menor infrator, marginalzinho que atuava no aterro do Flamengo, que foi amarrado nu ao poste, nos relembrando dos antigos pelourinhos do Brasil escravocrata.

Qualquer forma de repúdio, mesmo que fosse em favor da punição da criatura de acordo com a lei, era vista como simples peninha de bandido. Os reacionários raivosos babavam para qualquer alma, não caridosa, mas civilizada que repudiasse aquele vigilantismo. Como exemplo, destaco que vi um cibercomentarista que defendia a urgente redução da maioridade penal - para que os marginaizinhos fossem presos o mais cedo possível - ser repelido e chamado de hipócrita, leniente e várias coisas piores por centenas de pessoas. Para os seus histriônicos ofensores a única solução aceitável era a morte com requintes de crueldade.

As pessoas não podiam ser calculistas e exigir o isolamento de um adolescente de 15 anos por um sistema que praticamente já o pune como um adulto. Que o aprisiona dentro de um gueto marginalizante que irá se reproduzir quando ele se tornar adulto. A pena estatal de prisão, agravada pelo estigma social e pelas condições de instalações absolutamente inadequadas, será inevitável, se ele der sorte quando for adulto. Para outros desses agraciados pela menoridade penal com menos sorte, a pena social da morte é o destino, antes ou depois de se tornar adulto e apto ao "justo" encarceramento.

A verdade é que com a política carcerária que temos, pedir o cumprimento da Lei com a apreensão do menor e a prisão do maior, nada mais é do que ser calculista, verdadeiramente calculista por sabermos que ser ordeiro é condenar o pequeno ladrão a uma pena muito pior do que o tempo de cadeia.

Comemorar e enaltecer aquele ato bárbaro era necessário, era necessário o júbilo. O júbilo pelo sofrimento daquele ser repulsivo unia um pensamento extremamente conservador, fruto da eterna política do medo como combustível de consumo. As pessoas acham que estão sendo enérgicas, que estão sendo valentes e lutando contra aquela ameaça, no entanto, a minha leitura é que aquilo expressa um medo extremo, neurótico. O medo nos torna desumanos, insensíveis, o sentimento humano de amor próprio, assim como pelos próximos, gera o desejo desumano de ver aquela ameaça acorrentada, humilhada e melhor seria se fosse morta. Somos um paradoxo incompreensível.

Vi um comentário que falava em solução final para criminalidade nas nossas cidades ser curtido por um número enorme de pessoas. Sim, o brasileiro com acesso à T.V., internet, smartphone e tablet falou em genocídio com uma naturalidade aterradora.

Dentre as mais famosas vedetes da barbaridade podemos citar a moça loira, nova, bonita, casada, mãe e conceituada profissional do SBT, que desferiu todos os chavões fascistas possíveis nos poucos segundos em que expôs sua "iluminada" opinião. Reconheço que é preciso talento para a façanha e não à toa, foi tratada (e ainda é) como um oráculo.

Os defensores dos bandidos, esses malditos terroristas esquerdóides, deveriam levar o marginal para casa, afinal, a omissão estatal justificaria a atuação precária e amadora dos vigilantes. Falta polícia, despimos, batemos e prendemos no poste. Falta comida e abrigo, os esquerdistas que os sustentem com seu dinheiro.

Pena que essa lógica direta de substituição estatal não foi empregada na sujeirada resultante da greve dos garis no carnaval. A histriônica mocinha poderia chamar seus fiéis a obrigar os ébrios, sob chicote, a catar latas de cerveja na rua.

O velho mito da cordialidade brasileira cai ali. Mais uma queda, dentre todas as outras que sofre diariamente quando furamos as filas, não respeitamos os assentos preferenciais, quando dirigimos como loucos numa disputa milimétrica de segundos em cidades completamente engarrafadas.

Essa semana observei estarrecido um cidadão em um carro zero, dos mais modestos, desses de R$ 50.000,00, buzinar furiosamente para um guarda que segurava o trânsito, apesar do sinal verde, para desafogar um desses milhares de cruzamentos entupidos de carros. Quando dirijo, noto que é cada vez mais natural uma ou duas buzinadinhas rápidas assim que o sinal abre, provavelmente uma forma neurótica de avisar que o sinal abriu. Cada vez que tento sair da minha garagem sou ameaçado com aceleradas que tentam me bloquear, mesmo quando o sinal, que fica distante vinte metros da saída do meu prédio, está fechado. Acho que de todos os solos escorregadios, o trânsito do Rio deve ser o lugar onde o mito da cordialidade brasileira mais leva tombo.

O constrangimento, que pouco mencionei, veio quando explodiu a notícia de assassinato, sob tortura, de uma mulher que pensaram ser sequestradora de criancinhas. Um silêncio ensurdecedor por parte de todos os que defenderam aquela barbaridade denuncia esse constrangimento, cuja dedicação deste texto é tão escassa quanto a sua ocorrência no nosso convívio social.

O júbilo é constante, já que a violência é sempre notícia, o mito cai todo dia, porque o brasileiro, mesmo (e, talvez, principalmente) a elite, é extremamente mal educado, mas o constrangimento é sempre momentâneo. Quando a notícia esfria, ele acaba. Se é para ser radical, para cada risada e comemoração de atos de justiceiros deveríamos prender um cadáver sobre a TV das pessoas. Quem sabe se dessa forma o constrangimento se torne constante? Se não conseguimos ser humanos por solidariedade, que sejamos por constrangimento, a única coisa que nos resta em uma sociedade em que é vergonha ser pobre, mas ser bruto não.

Outras Palavras comenta aumento de pena para menores: http://outraspalavras.net/blog/2014/05/18/aumento-da-punicao-unico-investimento-nos-adolescentes/

O craque Marcelo Semer que, com muita propriedade e experiência, também comenta os equívocos sobre a redução da maioridade penal: http://blog-sem-juizo.blogspot.com.br/2013/01/reduzir-maioridade-penal-e-equivoco.html

terça-feira, 9 de setembro de 2014

Caso Aranha: apenas racismo?


O racismo expressado por vários torcedores do Grêmio (e não apenas pela única flagrada e flagelada) expõe as entranhas de nossa sociedade, isso apesar do grito conservador constante de que o brasileiro não é racista e que o problema se resume a coitadismo.

Ora, é racista sim, isso ficou mais do que evidente. Simplesmente não compro a balela de que a expressão "macaco" não possuía cunho racista. Nada mais racista do que isso. "Macaco" sempre foi o derradeiro recurso ofensivo dos racistas e possui o óbvio objetivo de depreciar a etnia e ligá-la a um degrau mais baixo da evolução.

Escolhido o bode expiatório, a descabeçada menina que diz que o Grêmio é sua paixão e tenta, entre choros e soluços, ligar seu fanatismo futebolístico à lamentável conduta que produziu, deixa escapar a sociedade a necessária reflexão, afinal, o brasileiro não deve se arrepender após ser racista, mas sim defenestrar definitivamente esse comportamento que já humilhou e matou tanta gente, que já negou oportunidades e já condenou uma enormidade de brasileiros à pobreza e à marginalidade.

Qual morador branco da Zona Sul do Rio (e inclua aí qualquer outra área nobre de qualquer cidade) nunca foi racista? Qual de nós nunca fez um comentário desagradável ou uma brincadeira idiota de cunho racista? A questão verdadeira é: quantos de nós procuram nunca mais fazer isso na vida? Quantos de nós ainda precisam se policiar e, se precisam, procuram fazer isso? O que estamos ensinando aos nossos filhos?

Inocentes são os que acham que o racismo, ainda hoje, não se reflete na condição social da juventude negra.

Na web, não faltaram acusadores, cobertos de razão, pois o repúdio público é necessário. Logicamente, raras foram as manifestações de solidariedade à torcedora. Vi uma matéria em que se afirmava que ela não era racista, já que possuía amigos negros, que não tardaram a defendê-la. Uma outra destacava uma imagem da menina, enquanto trabalhava junto à população pobre, o que seria uma comprovação de que o ato foi apenas um acidente de percurso. Vi um texto, cujo link está abaixo, no qual se faz uma longa narrativa sobre os motivos pelos quais o goleiro teria sido chamado de macaco que, segundo o gremista autor, não possui qualquer relação com racismo.

Eu não estava no estádio, não posso afirmar se, de fato, a torcida foi racista, mas, após ler o texto noto que, na realidade, a expressão é de fato injuriosa, depreciativa e, conforme nossa própria história demonstra, constantemente ligada ao racismo. O simples fato de se chamar um indivíduo de macaco remete ao racismo da expressão, à tentativa de depreciar o alvo da injúria que, mesmo não sendo negro, merece ser ofendido como um. Ainda que a torcida gremista não se muna de racismo ao entoar a expressão, entendo que a conduta deveria ser evitada, afinal, sabe-se lá quantos torcedores, de fato, lembrem da narrativa histórica gremista ou apenas dão vazão ao seu preconceito.

Ainda que a expressão não seja racista, ainda que a menina não seja racista, nada disso apaga a estupidez de certo tipo de torcedor de futebol, que, em bando, se porta como um babuíno enfurecido (macacos?). Grita, faz pose e grunhidos junto com seu bando (macacos?). Se movimenta em transe, se aperta, se espreme, se empurra (macacos?). É capaz de partir do regojizo ao ódio instantâneo e brutal ao grupo rival (macacos?). Afinal, acho que Luciano Huck, em sua campanha parasitária, tinha razão, somos todos macacos.

O lamentável ocorrido nos trouxe a oportunidade de não só refletir sobre  o racismo, presente nos estádios de forma corriqueira, afinal, esse não é o primeiro nem será o último episódio em que torcedores de futebol se portam de forma racista, que o diga o jogador da seleção que comeu uma banana em campo, mas de repensar a forma pela qual torcemos.

É mais do que evidente a necessidade de revisão da atitude dos torcedores que vão ao estádio. O racismo, presente ou não no episódio (deixo isso pela consciência de cada um) é apenas mais uma faceta do comportamento em manada que toma conta do torcedor que, não raro, se sente protegido pela turba. Dessa vez temos o racismo ligado ao negro, mas de chavões preconceituosos as arquibancadas estão cheias! Viado e paraíba, talvez sejam tão constantes quanto macaco ou crioulo. Depois vem o puta ou piranha, normalmente reservado às moças incautas que passam perto da torcida rival ostentando o uniforme de sua preferência e por aí vamos descendo uma triste escadinha de pura ignorância.

Dessa vez chamaram o cara de macaco. Mas quantas vezes esses mesmos torcedores não agrediram seus rivais? Às portas da copa do mundo tivemos um evento desses. Quantas mortes já tivemos devido à estupidez de futemaníacos que acham que seus times são a coisa mais importante do mundo?

Pessoalmente, acho patológico que alguém se deprima, brigue ou até mesmo se ofenda com futebol, contudo, o fenômeno é tão constante no Brasil que eu devia ter medo de expressar isso. Num país em que a hombridade é medida pela possibilidade de virar a casaca e que indivíduos escolhem suas amizades baseadas no time de futebol, não me parece estranha a possibilidade desses mesmos torcedores se agredirem e se matarem.

Desde quando a paixão e a emoção se converteram em obsessão e fanatismo? Desde quando a galhofa e a rivalidade se tornaram ódio e insensibilidade? Não podemos mais usar nossos estádios como via de escape para recalques e preconceitos. 

O racismo e a agressão física, na realidade, são apenas lembranças da crueldade extrema que comumente habita a mente do torcedor, enquanto se dedica ao esporte que ama. Já vi, por exemplo, aqui no Rio, torcidas rivais criarem cantos para fazer chacota de um lamentável acidente que vitimou a torcida do Flamengo: Nada mais gostoso que cair da arquibancada, Raça Fla, ja experimentou! A galhofa pode ser saudável, o prazer pelo sofrimento alheio jamais será. A torcida do Flamengo não é santa, já se utilizou desse tipo de coisa, esse é apenas um exemplo. Eu sei, também, que a musiquinha é velha, mas não tão velha quanto a crueldade do torcedor de futebol.

A verdade é que acontecimentos lamentáveis envolvendo torcedores vêm se repetindo, há tempos incontáveis e é a hora de, no lugar de tratar tais fatos como meras exceções ou escolher um culpado, civilizar os estádios, isso se o mito do brasileiro cordial permitir...


* * * *

A "verdade" sobre o "macaco": http://gremio100mil.blogspot.com.br/2014/02/o-porque-do-macaco-verdade-sobre.html

Ótima reflexão sobre a cultura do bode expiatório: http://andreluizvbtr.blogspot.com.br/2014/09/patricia-moreira-e-institucionalizacao.html?spref=fb