sábado, 3 de maio de 2014

Criminosos e heróis

Imagem do artista urbano Dran

http://www.dcriativo.com/2014/05/street-art-dran-humor-negro.html

A histeria midiática, com a aproximação de nossas eleições presidenciais se intensifica. A maioria do tempo é destinado às mais variadas denúncias, que vão desde a mais recente investigação da Petrobrás até a já antiga perseguição a José Dirceu (tendo em vista a velocidade factual cibernética). Já as notícias de teor mais técnico, que sem qualquer detalhe explicam que a bolsa sobe quando Dilma perde popularidade, que o baixo nível de desemprego e a queda de informalidade, na verdade, não são relevantes e que a elevação da arrecadação é uma péssima notícia, fazem o trabalho político da Mídia com sutileza fingida.

O trabalho político, apesar de amargo, consigo digerir, o que não consigo nem mesmo engolir é o discurso de resgate moral da política brasileira. 

Segundo nossos vigilantes, o Brasil foi formado por marginais expulsos da Europa e a desonestidade estaria impressa no DNA do brasileiro. O povo tupiniquim é invariavelmente preguiçoso, desonesto e oportunista (o povo, logicamente, porque a elite, por mais que tente, não consegue colocar a "paraibada" na linha). Ora, diante dessa inegável e nefasta herança, como atribuir ao neto de Tancredo a responsabilidade pelo resgate da honestidade brasileira? Apesar de poderoso, Aécio ainda não possui poderes divinos e, cá pra nós, é neto de quem faleceu no PMDB, partido que, agora, faz parte da quadrilha "petralha".

O moralismo é uma arma conservadora muito antiga. Corresponsável pelo surgimento dos mais variados regimes radicais da extrema direita, o discurso óbvio da honestidade despolitiza o receptor da mensagem e desvia sua atenção para questões políticas que, apesar de supostamente marginais, deveriam servir como o critério mais importante para a escolha do candidato. A honestidade é obrigação e não plataforma e por mais que seja caricaturada pelos que foram passar vergonha na Marcha da Família, versão século XXI, tem sido um critério cada vez mais usado pelos conservadores que se dizem moderados e isso é mau sinal.

Foi exatamente com esse critério que nossos Oligopólios Midiáticos, na década de 80, ajudaram a eleger Collor de Mello, o herói, caçador de Marajás. Vejamos o destaque ao "herói", dado pela Veja: 


Vejam a imagem do herói: novo, bonito, fazia cooper, lutava karate (e, segundo diziam alguns, não só o japonês, mas o boliviano também) e o mais importante, era honesto. Deflagrado o processo de impeachment do "herói", cuja família possuía uma antiga relação comercial com a maior rede televisiva do Brasil, rapidamente seus antigos apoiadores o infectaram com a lepra política, transmutando seu apoio em intensa vigilância. Não esqueçamos, ainda, a Capa da Veja pouco tempo depois, enaltecendo a denúncia do irmão de Collor que, segundo alguns, foi motivado por ciúmes e não honestidade:


O filme hoje se repete, natural e monotonamente. Hoje, Collor é relacionado à figura de "Lulla", embora há quem afirme com toda a veemência que a família Collor continua no controle da emissora Global em Alagoas. A tentativa de ligar o Governo Federal à corrupção dos tempos colloridos, logicamente, passa ao largo da observação dos grupos políticos e midiáticos que o apoiavam e camufla o comportamento pendular da Mídia que escolhe aliados, adversários, heróis e vilões de acordo com seus interesses econômicos.

Os crimes do mensalão não podem ser esquecidos, nem seus criminosos, tudo é um escândalo, enquanto denunciam discretamente, isso quando o fazem, o estarrecedor fato de ser encontrada meia tonelada de cocaína no helicóptero da família de um deputado tucano. Políticos corruptos devem ser defenestrados, mas traficantes não, ao menos os ricos, já que os traficantes miseráveis do gueto merecem a morte com requintes de crueldade.

O tucano e seu helicóptero são perdoados, mas o jovem assassinado pela polícia em Copacabana, não, afinal, os colunistas tão repetidos pelos zumbis rapidamente trataram de mostrar que o tal dançarino, na verdade, era amigo de traficante. Será que alguns dos amigos do dançarino chegaria a vender um pouquinho daquela cocaína encontrada no helicóptero, caso o piloto, o óbvio e poderoso dono de meia tonelada de cocaína, não fosse pego? Vamos mudar de assunto, afinal, a corrupção está demais!

Como não poderia ser diferente, o discurso moralista raso se torna uma avalanche de chorume para os que, independente da matiz ideológica, analisam os fatos e não os comentários, sejam de internautas ou dos colunistas de nossos Oligopólios, verdadeiros arautos que, na verdade, reproduzem a opinião  de quem os remunera.
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A mais óbvia demonstração está no sadismo inserido na cobertura sobre a execução da pena de José Dirceu. Um sadismo esquizofrênico, bipolar e que não resiste à mais breve reflexão.

O mais radical e moralista veículo midiático brasileiro, ao acompanhar ferozmente a forma pela qual Dirceu expia sua pena (logicamente, em prol da moralidade), não se furtou à utilização de imagens obtidas de dentro do presídio, de forma obviamente criminosa, por um agente penitenciário que, conforme deveriam desejar as pessoas de bem, deveria ser punido por sua transgressão.

Não bastasse o ato violador, que, por si só, é digno de repúdio, a lógica capitalista externada por esta mesma Mídia nos leva à conclusão de que dificilmente aquele agente penitenciário obteve aquelas imagens por abrigar um senso de dever cívico.

Essa forma parcial de proceder (não só por abrigar determinada tendência partidária e ideológica, mas também por divulgar pílulas de informação) foi reproduzida na recente vistoria à cela de José Dirceu. As imagens, ilegalmente obtidas, foram, segundo algumas fontes da web, deflagradas por um assessor do PPS que, pasmem, sequer deveria estar ali. Coincidentemente, quase que instantaneamente as tais imagens de Dirceu na Papuda foram parar em um desses veículos conservadores, ou seja, novamente os zumbis midiáticos aplaudem um furo de reportagem obtido por meio de fontes ilícitas.

Imediatamente após a coleta fraudulenta de imagens, transferidas, sabe-se lá como e por quem, já que o assessor nega uma deputada que sequer entrou na cela de Dirceu se dirigiu a esta mesma mídia, para denunciar as regalias do petista, contrariando o relato de um deputado da oposição (Jean Willys), ou seja, que teria todo o interesse em defenestrar Dirceu, mas preferiu a verdade, preferiu, como dizem os zumbis, o caminho da moral e dos bons costumes.

Em momento algum se dá destaque ao relatório de Jean Willys, que, mesmo sendo da oposição, não serve porque é "comunista". Muito melhor é acreditar em quem diz que vê sem ver e em quem recorre a condutas ilícitas para obtenção de imagens.

Tal qual a argumentação sobre as origens do povo brasileiro, a incoerência me parece mais do que evidente, na medida em que a perpetração de crime, mesmo que para vigilância de corruptos (o estigma da moda), jamais se firmará como medida pela moralização do País.

Outro ponto curioso é que nossos vigilantes e legalistas midiáticos, apesar de gritarem por um sistema duro, aos moldes do que dizem que acontece na Europa "desenvolvida" e nos EUA, não se preocupam com o fato do Batman brasileiro simplesmente ignorar as normas vigentes para negar a Dirceu uma progressão de regime já impassível de discussão judicial.

A Mídia destaca a vistoria e as regalias na cela de Dirceu, mas o papelão do Batman, que senta em cima, ilegalmente, da questão pertinente à progressão de regime da pena do petista, que deveria ter o direito de sair para trabalhar como todos os outros, eles escondem. Santa vigilância!

Mais uma vez, nossos arautos da moralidade aceitam "pequenos" desvios de conduta em prol do bem comum: a defenestração dos corruptos e cinicamente reforçam a cultura que estaria impressa no DNA do brasileiro, aquela que justifica pequenos delitos, atitudes cotidianamente antissociais e, até mesmo, desumanas, tudo pelo jeitinho que tanto fingem execrar.

A Mídia, que há muito sabe disso, desvia a atenção dos zumbis, jogando cadáveres frescos. Enquanto isso, os zumbis continuam a ignorar que um Estado Democrático de Direito não se faz com punibilidade seletiva e tolerância a desvios. O rigor, pelo que tanto clamam nossas pessoas de bem, deve ser igualmente democrático e não reservado apenas aos "petralhas", aos "comunistas", aos "vândalos", aos "badereiros" ou aos "bandidos" que não estejam de terno e sim de chinelo, que demoram meses para traficar meia tonelada de cocaína, transportada, sabidamente, em helicópteros de famílias abastadas.



Fantástica observação da Forum sobre o assunto: http://www.revistaforum.com.br/blog/2014/01/sobre-fundamentalismo-midiatico-e-zumbis-amestrados/

A versão de Jean Willys, da oposição, sobre as regalias de José Dirceu: http://jeanwyllys.com.br/wp/o-que-vi-e-ouvi-em-minha-visita-a-papuda

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